Viva Madureira. Viva Amadora.

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Ai, gente. Tô todo quebrado, tô na cama, levei um tombo hoje, ÉPICO, daqueles de câmera lenta, com coral cantando no fundo, o celular, NOVO, voando pelo ar,

eu do alto de uma porra de uma escada escandalosamente alta, de uma igreja Católica em Amadora, uma região da periferia da Grande Lisboa –

sim, Lisboa tem periferia, para de cair na lorota dessa tua amiga blogueira de turismo,

e a vida de Portugal está na periferia. Lugares com nomes vivos. Reboleira, Amadora.

Amadora antes se chamava Porcalhota. Porra, as pessoas, no século 19, disseram:

Caralho, vamo morar num lugar chamado Porcalhota? Não tá bom não, Portugal?

Então alguém, não sei quem, escreveu uma carta para O REI. Os cara tinha rei ainda, em 1900 e bolinha. E pediu pro Rei mudar o nome do lugar, que era pejorativo, pra Amadora.

O Rei: fodace, cara, não moro aí mermo, longe pra caralho, uma hora de trem, bota o nome que tu quiser nessa porra. Bota Brasil, que dá no mermo. Longe, pobre e eu não vou nunca lá senão me batem.

Dito e feito. Amadora.

Eu AMO AMADORA. Dois ano e porrada em Portugal, pra enfim dizer que amo um lugar aqui. Não tenho esse tesão todo em Lisboa. Acho bonita, tal, cidade europeia, sol, gente comendo sardinha, ok.

Mas enquanto as pessoas vão pra praia, eu pego o trem, que eles chamam de COMBOIO, e vou pra Amadora.

Amadora é PRATICAMENTE MADUREIRA. Um monte de gente mal assalariada, e feliz. Ou infeliz, mas rindo na cara da desgraça. Madureira.

Se tiver que nascer o samba em Portugal, vai ser em Amadora.

É angolano, caboverde, senegal, brasileiro, português, venezuela, tudo junto, num calor do caralho, onde o comércio não parece NEM DE LONGE com Europa.

É um pedação de Madureira Eles não gostam que eu diga que é do Brasil, porque, enfim, o Brasil não é unanimidade por aqui. Mas Madureira sim.

Eu tô indo pra Amadora pra fugir da depressão. Lisboa, o povo é muito blasé. Muito metido a qualquer merda. Eu gosto é de gente de verdade.

A pobreza a todos iguala. E a pobreza em Amadora não é uma pobreza que dói. Caralho, gente, é Madureira. Tem gente vendendo comida na rua, tem sorrisos abertos, tem gargalhada, barulho, de gente que não sai na TV. Gente que mora em Amadora é estigmatizada como pobre e perigosa. Como se Lisboa fosse Luxemburgo. Lisboa falando de Amadora. Um fudido falando do outro.

Amadora tem identidade. Isso sim é foda. É o povo negro, brasileiro, africano, os imigrantes e os portugueses que moram lá, que estão criando um fenômeno suburbano igual aconteceu no Rio no século 20.

Eu vou pra lá sempre que posso. Meu vício. Me sinto mais perto do lugar onde nasci, das pessoas com quem vivi. Em Lisboa você não vê pessoas negras nas ruas com tanta frequência. Isso, pra um carioca de subúrbio ou favela, é o fim do mundo. Esse monte de gente branca junto, nunca dá certo.

Amadora não. Amadora é a mistura.

Mas, hein. Eu tava filmando isso. Essa Amadora, o céu azul, as criança na rua, no alto de uma escada, da Igreja de Amadora, uma igreja católica, que é o que tem por aqui.

Vealdo, eu tô curtindo a vida, quando NÃO VEJO UM DEGRAU.

Saca, aquele degrau que tu não viu? Ele tava lá, mas ninguém viu? Eu não vi o degrau. MAS TINHA UM DEGRAU.

E o que aconteceu? EU PULEI ESSE DEGRAU, e pus o pé no outro degrau debaixo, JURANDO QUE EU TAVA NA ORDEM.

Não tava.

Então eu experimentei um dos eixos fundamentais da física, em meu corpo, a gravidade. E desci. Desci, dançando como uma mulher branca numa roda de samba no Cais do Valongo.

Isso mesmo. Foi feio, e risível.

Depois de rolar a escada, e quando eu vi que não tinha mais nada, só chão, eu fiquei na calçada e vi uns sapatos.

E uma vovó, vestida de preto, disse:

-ó minino, caíste.

Aparentemente, sim, vovó. Meu primeiro tombo europeu. Quase 3 anos aqui, meu último tombo foi no Engenho de Dentro. A senhora não sabe onde é o Engenho de Dentro.

Vieram pessoas pra me levantar. Estavam de preto e óculos escuros. Pensei: fudeu. A Polícia Federal. Foi tudo armado.

Amigo. EU CAI NA PORTA DE UM VELÓRIO.

NA PORTA DE UM VELÓRIO EM AMADORA EU CAÍ.

Os cara tava enterrando um véio, eu levantei, todo mundo no velório me olhando, eu pingando sangue do joelho, cotovelo, mão, eu, TOTALMENTE TOMADO PELA IDIOTICE QUE ME HABITA, OLHO PRA VOVÓ E DIGO:

-A vida é frágil, né?

(uma mulher, fumando, no fundo, RIU) Pausa: eu só quero essa pessoa no meu velório. Só quero gente debochada me enterrando.

A pessoa quando é pobre, é pobre por baixo da pele, até o osso, e honra sua pobrice, que cai de uma escada de casamento, dentro de um velório, levanta sangrando e ainda faz piada.

E me dei conta de que tá tudo dando errado comigo desde 3 de dezembro de 1974. Uma merda atrás da outra, e eu rindo.

Viva Madureira. Viva Amadora.

Já pus curativo.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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