Tio Celito venceu. A Esquerda portuguesa se perdeu.

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Portugal, de tradição de uma esquerda forte, vê os votos consagrarem Marcelo, candidato de direita, e o mais preocupante: o terceiro candidato mais votado é da extrema-direita.

Portugal elegeu ontem, 24 de janeiro de 2021, o seu presidente. Numa eleição com 60% de abstenções, muitas em razão da pandemia. Marcelo assume o segundo mandato, para mais 5 anos no Palácio de Belém, sede da Presidência portuguesa, numa Europa sob tensões e num mundo dividido.

“Tenho críticas ao Marcelo, tanto quanto tenho ao Fernando Henrique, e ambos se parecem. Mas são democratas. Enquanto que o que tem pela frente é selvageria e dor.”.

Tio Celito.

Apelido dado pelos angolanos em Portugal e Luanda. Marcelo, repudiado por uns, adorado por outros, tem elementos na sua comunicação pública que o posicionam muito bem entre portugueses e migrante.

O pai exilado no Brasil

Eu só entendi bem o Marcelo, depois que entendi o pai, Baltazar Rebelo de Souza. Marcelo, filho mais velho, se formou em Direito, e desde jovem manifestava interesse no fazer político. Certamente, vindo de uma família privilegiada, podia dedicar tempo pra isso.

Seu pai, Baltazar, foi um dos nomes mais proeminentes da ditadura de Antonio Salazar. Portugal teve a mais longa ditadura do Ocidente, que terminou em 25 de Abril de 1974. Baltazar teve várias funções no regime de Salazar, era um homem do sistema, tecnocrata e leal ao ditador. No entanto, até pessoas de pensamento oposto ao dele, como o do presidente Mário Soares, o consideravam, dentre os agentes da ditadura, o mais aberto a conversa e ao pensamento.

Linhas gerais, Baltazar não era um homem bélico. Não discursava com ódio nas venta, faca na mão. Em 1968, já no fim da ditadura, Salazar nomeia como governador geral de Moçambique, QUE AINDA ERA UMA COLÔNIA de Portugal. Baltazar iniciou um processo de “africanização”, ou de valorização de nomes e pensamentos locais visando alterar a centralidade do poder o quanto possível, e era um homem da rua. Em Moçambique, ele tinha um comportamento tido como populista para um gestor europeu. Mas que nada, Baltazar era muito afetivo na sua gestão, menos frio. Estava em África. Um português, branco, médico, colonizador, que não se sentia no papel tradicional reservado a ele. Por palavras ao vento ou meros abraços, a verdade é que o povo gostava muito dele. Qualquer semelhança, não é mera coincidência. Marcelo decidiu seguir os caminhos do pai, no fazer político, no trato com as pessoas. Diz-se que Marcelo seria um dos herdeiros do regime ditatorial. Já ele diz que àquela altura dedicava-se ao Jornal Expresso, reuniões com seus amigos, uma vida entre os delírios da juventude e utopias mais estruturantes, com um Estado onde ele coubesse, mas isso não necessariamente precisava de Salazar. Sagitariano, Marcelo via muitas possibilidades. E viu, na Revolução de 74. Ambições pessoais que, naquele momento, todos tinham por Portugal. Mas o pai, foi exilado no Brasil. Morou em São Paulo, enquanto outro, Marcelo Caetano, esse sim, que herdara o regime quando Salazar morre, foi morar no Rio, dando aulas na falida Universidade Gama Filho, Zona Norte, onde eu estudei até o quarto ano do Direito.

Marcelo foi eleito com pouco mais de 60% dos votos.

Foi criticado por ter uma postura populista. Abraçando migrantes, pobres, idosos, visitando favelas em Lisboa. Mas Marcelo se posicionou pela Constituição, pela democracia, pela diversidade, por um país feito por imigrantes e portugueses, num ano onde a extrema direita atacava ciganos, negros e imigrantes, e a esquerda, tonta, não percebia o quanto o reforço destes temas são importantes NUM MUNDO EM COLAPSO. Marcelo pode ter visto, outra vez, oportunidade onde havia crise, como em 1974. Mas ele esculachou o candidato da extrema-direita num programa de TV, ao dizer que “não há português puro, ou menos puro”. Marcelo tocou na ferida mais tosca e tacanha de uma parcela da sociedade que ainda espera pelo retorno de um Salazar, um pai, pra protegê-los. Enquanto isso, Portugal segue estático como 45a economia do mundo, o pior salário da Europa, a saúde pública sendo sucateada, péssimos empregos para imigrantes, pouco retorno social para os contribuintes, e uma esquerda muito técnica, eu digo, competente e capaz de gestão, mas velha em seu discurso, cansada, sem criatividade, sem utopias que incluam todos: angolanos, nepaleses, franceses, brasileiros, chineses. Não. Para a esquerda, só um Portugal existe: o deles. Com seus acadêmicos, jornalistas e intelectuais que se ouvem numa bolha. Enquanto a juventude portuguesa se tornou global. As fronteiras entre um jovem português e um jovem de qualquer lugar do mundo foram derrubadas, pela cultura digital.

São jovens potentes, que tem referenciais no mundo todo. Mas a esquerda é serena demais, silenciosa demais, acadêmica demais, e é feio pedir para que sejam outra coisa. Mais carismática, mais diversa. Mesmo o Bloco de Esquerda. Eu estive num almoço com alguns funcionários do Bloco. De diversas áreas. Um deles, de extrema arrogância, me perguntava como eu tinha trabalhado para Marina Silva, nas presidenciais de 2018, que resultaram na vitória de Bolsonaro. Eu disse. Falei da relação mais afetiva, pessoal. Ele mordia a haste do óculos e, com desprezo, dizia que isso não cabia aqui, Portugal jamais ia se rebaixar a isso.

Toma.

As Mortágua, gosto muito delas. Inclusive Joana, que considero a mais brasileira das políticas portuguesas. Mas elas estão dentro de uma bolha. Uma bolha que olha bem pra diversidade de gênero, raça, mas tudo de maneira academicista e sem inclusão real de imigrantes. Já o candidato da extrema direita, segue.

Mesmo Portugal vendo o que se sucedeu no Brasil e nos Estados Unidos, que terminou com insurreição, e no Brasil, um fracasso com golpe em curso, os eleitores portugueses deram mais de 200 mil votos pra ele. O que aqui, é uma infinidade de votos, já que Marcelo se elegeu com pouco mais de um milhão. Mas a esquerda se diz surpresa, com tanto português fascista, racista.

Como assim, surpresos? Vocês tem de ouvir, todas as vezes, que os antepassados de vocês foram vorazes exploradores? Os eleitores de extrema direita, antissemitas, racistas, sexistas, seguem os seus próprios ancestrais. Não tem surpresa. Surpresa é neonazista preto no Brasil. Aqui, nenhuma supresa.

Temos mais 5 anos de Marcelo e uma forma de fazer política que infelizmente vai fazer falta. Marcelo é um homem de jeitos, de gentilezas. Independente de sua corrente ideológica, quando conversei com ele, senti que estava diante de um sujeito que sabia o peso do cargo. Lucidez pra saber seus limites. O déspota se pensa infalível. Tenho críticas ao Marcelo, tanto quanto tenho ao Fernando Henrique, e ambos se parecem. Mas são democratas. Enquanto que o que tem pela frente é selvageria e dor.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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