Ótica

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Ilustração: Claudio Brites

Cheguei numa ótica ontem, e falei:

-Bom dia

-buD ííía

-Olha, eu queria

-QUERIA? NÃO QUER MAIS?

Olhou-me a escarnecedora com a boca cheia de dentes, não sabendo que ando cansado de, todo dia, isso.

Na primeira, há dois anos, ri. Oitocentas vezes depois, não sou obrigado.

Eu parei. Olhando pra vendedora. Com a receita do óculos na mão. Eu me senti no meio do Calçadão de Madureira, num sábado lotado. Então o espirito de Jurandir veio sobre mim.

-Querida. Vocês inventaram essa porra desse caralho dessa língua, e não sabem usar essa merda. QUERIA é o verbo no pretérito imperfeito, onde o ato se encontra num tempo anterior ao da fala, e que foi interrompido por outro e posterior ato, ou seja, a minha ida a ótica, ao que, vejamos:

eu então queria uma porra de um óculos novo nesse caralho, pá,

EIS;

LEVANTAR-ME-EI E IREI TER COM O OCULISTA, PORVENTURA AJUDAR-ME-Á TAL ARTÍFICE? O CHEIRINHO DA LOLÓ BATEU-ME AGORA

(se eu falasse assim dendi casa, ela já tinha pedido um mandado de restrição de aproximação)

Então eu peguei um metrô e fui até a ótica, merda. Este ato interrompeu o anterior para o consolidar.

Portanto, o verbo abrevia o arco, que pode ser arcaico como:

Eu quero um óculos. Vim até aqui para que me façam os óculos. Dá-me óculos. Dá-mos agora. Falo igual um silvícola porque não conheço outros tempos do verbo querer, senão o do presente, uma vez que ele se acomoda ao meu temperamento autoritário, o qual oculto usando leves cardigãs e este cachecol.

E depois de explicar isso, peguei uma garrafa de querosene, e taquei fogo na loja.

Não.

Eu só respondi.

-Ahn. Ok. Eu vou na outra ótica, onde entendam brasileiros. E foram-se embora 500 euros, que Radijah, técnica oculista da loja ao lado, abocanhou.

Camaradas de Portugal, cessem a putaria. Brasileiros usam o pretérito imperfeito porque é sofisticadíssimo e elegante, gentil, na boca do povo que tem açúcar nas vogais. A gente pode ser uma barbárie política, mas a gente devia receber os Direitos autoriais pela criação da língua portuguesa, já que fizemos mais coisas com ela que vós outros.

Não inventamos o queria. VOCÊS inventaram. Assumam o filho.

Fiquem malandros, ou os oculistas indianos vão ficar ricos. Eles não se importam com o jeito que falamos, mas sim com o dinheiro no bolso.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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