Olhos que condenam

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Olhos que Condenam, Netflix, 2019.

Tô deixando aqui uma das mais recentes e importantes referências do audiovisual, pra você assistir e entender uma realidade: Corpos negros são recipientes do terror que o povo branco precisa direcionar para algum vilão. Na Holanda, há uma figura, de um homem negro, chamado Zwarte Piet. Ou, em inglês, Black Peter.

Isso deu uma merda, até que a Suprema Corte decidisse que, no Natal, as pessoas não podiam mais pintar a cara de preto, o chamado blackface, pra personificar o Black Peter. E quem é esse tal de Black Peter? Um personagem que parece um SERVIÇAL do Papai Noel, que, na chegada do Papai Noel na cidade, junto com ele vem um homem branco, pintado de preto, se comportando de maneira caricata e humilhante, e se as crianças foram boas, Papai Noel dá a elas um presente, mas se foram más, Black Peter vai castigar os pequenos.

Não tamo falando de século 19. Isso durou até a década passada, na Holanda que você jura que é liberal porque pode fumar aquele maconhão na rua. O negro, sendo o recipiente dos maus sentimentos. Do sujeito que vai trazer o castigo, a dor, o medo. A criança cresce, associando O NEGRO AO PERIGO. Não adianta. Tu cresce numa cultura dessas, todo ano sendo lembrado que um negro anda na sombra do Papai Noel pra te castigar, CRIANÇA, sem pensamento crítico, e isso é plantado em você, você vai associar o negro ao perigo. E, claro, o branco, a bondade. Sai da Holanda, bora pra Lousiana, Sul dos Estados Unidos.

Depois da Guerra que culminou na derrota dos Confederados e no fim da escravidão, negros, não mais algemados, passaram a ser considerados perigosos, pois os brancos diziam que não sabiam o que negros fariam sem controle, sem comando, sem correntes e sem donos. A projeção do mal, do perigo, sobre o corpo negro.

Um dos primeiros crimes que se imputava ou tentava se imputar ao homem negro, era o estupro. Porque a mulher branca, mãe protestante, guardiã da santidade do casamento cristão, monogâmico, puro, era vulnerável e frágil diante das “bestas” pretas. E mulheres negras eram vagabundas, prostitutas, andavam com navalhas, podiam roubar, matar, invadir casas. Esse foi o pensamento disseminado. Soltos, negros não poderiam gozar de direitos de humanidade, nem de reputação. Não poderiam entrar num armazém e pedir farinha pra fazer pão, nem pagando, muito menos fiado, não poderiam sequer ENTRAR NO ARMAZÉM, pois, se conquistassem aquele espaço, roubariam e matariam os donos. Tanto,

Que quando negros começaram a consumir, pra viver, comer, foi estabelecida a segregação. Negros nas lojas de Black Only. Brancos nas lojas de White Only. NASCE NO SENTIMENTO DE QUE O NEGRO É PERIGOSO, a segregação nos Estados Unidos. E isso deriva do ódio racial. Antes “macacos”, “mulas” e escravos, agora juridicamente elevados a condição de PESSOAS e não COISAS, jamais seriam aceitos na sociedade que FOI CONSTRUÍDA SOBRE OS CORPOS DELES. Neste momento ficou nítido que o negro, se não fosse um escravo, não seria aceito na sociedade. Não havia, como Malcolm X dizia, um projeto de prosperidade para o humano negro. O negro, não fossem as lutas e as leis, seria escravo até hoje. No sul dos Estados Unidos, homens negros não podiam sequer olhar para uma mulher branca. Se fossem pegos, poderiam ser enforcados, com a acusação de serem estupradores. Provas? Bastava a lágrima de uma mulher branca, igualmente racista, igualmente interessada na extinção do povo negro. É preciso parar com o mito de que mulheres brancas durante e depois da escravidão foram vítimas do homem branco. Elas foram as jóias da coroa desse sistema. O ouro, a riqueza e os privilégios obtidos com a escravidão vestiam seus corpos, ornavam em suas cabeças, orelhas, pescoços.

Foi Ruby Hamad, jornalista e doutoranda na New South Wales University, quem disse que as lágrimas de uma mulher branca impactam a sociedade, porque nela repousa a imagem de “donzela na torre”, esperando salvação de seu senhor. As queixas de mulheres negras e racializadas não são páreo para as lágrimas de uma mulher branca que se diz em perigo.

Assunto delicado, dentro das fileiras do feminismo branco, onde há milhares de mulheres que pensam que chegaram ao ápice da compreensão do mundo por serem feministas, mas ao chegarem lá, encontram pretas e racializadas dizendo que elas continuam opressoras.

Mulheres brancas foram via auxiliar do homem branco. E ainda hoje, o são.

Os corpos de negros enforcados ou as mulheres negras, SEMPRE estupradas e assassinadas, não geravam comoção. Porque mesmo livres, não eram pessoas, eram coisas. A disputa era no simbólico. O negro não pode se parecer humano. Não pode ser nerd. Não pode ser consumidor de Dio’r. Não pode entrar na ZARA pra comprar roupa. Não pode dirigir um carro. Não pode ser “irreverente”, lembrando do caso de Hélio Martins, que há duas semanas foi filmado dizendo que era racista, sim, e odiava uma criança branca que, segundo ele, era “irreverente demais, cheio marra, malandro”, o negro não pode ser alguém. A pergunta que ainda grita, de Bell Hooks: “Não sou eu uma mulher?”

E uma mulher, com tudo que isso implica? Todas as complexidades? O negro não se resume em sua cor, mas na sua humanidade. E nenhum feminismo radical dá conta disso, porque ao dizer que gênero vem antes de raça, joga no chão toda a luta e as vidas de homens e mulheres negros que trabalharam para que o negro fosse visto em toda sua diversidade. Corta pro Brasil. Ao pesquisar as palavras “negro” “acusado” “injustamente”, vieram 67 resultados, todos no Brasil, de 2018 pra cá. De acusação de roubo, furto, invasão de residência, desvio de dinheiro, estupro, assassinato, TUDO sem provas. Apenas uma pessoa, branca, do outro lado, dizendo.

E basta isso, pra Polícia se mobilizar e prender. HÁ PESSOAS PRESAS, por acusações sem provas de brancos.

Neste ano, um homem negro foi obrigado a tirar parte da roupa que usava no supermercado Assaí em Limeira, no interior de São Paulo. Luis Carlos da Silva, de 56 anos, foi acusado de roubo por seguranças do atacadista.

Em junho, um professor de surfe negro acusado injustamente por furto de bicicleta. Matheus Ribeiro registrou boletim de ocorrência contra casal que o acusou pelo crime, ambos brancos. A polícia prendeu o suspeito, branco, Igor Pinheiro, de 22 anos, morador de Botafogo. O rapaz branco tem 28 passagens pela polícia por diversos crimes.

No mesmo mês de junho, funcionários de uma loja do Shopping Pantanal, em Cuiabá (MT), acusaram o servidor público Paulo Arifa de ter roubado um par de sapatos, que ele tinha acabado de comprar.

Um jovem negro, em 2020, acusado injustamente oito vezes, foi absolvido no STJ após falso reconhecimento. Quando falamos de reconhecimento facial, 70% dos casos apontam para negros.

Agora, em setembro, um homem negro, pobre e feirante de Petrópolis foi abordado sob a acusação de um roubo que não cometeu e colocado para reconhecimento ao lado de homens brancos. Esse foi o panorama que levou um jovem inocente à prisão, onde ficou por 15 meses, sem que houvesse provas contra ele.

O ato, considerado de racismo estrutural e institucional, levou a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), assistente no caso, a entrar com um pedido para que o Estado indenize o acusado por danos morais ocasionados por erros na investigação, no julgamento e na acusação.

Em setembro do ano passado, Fernando Henrique dos Santos, um jovem negro de 26 anos e sem nenhuma passagem pela polícia, foi condenado a oito anos de prisão (regime fechado) pelos crimes de roubo e formação de quadrilha. Fernando, que é professor de educação física e educador num projeto social na zona sul de São Paulo, foi acusado de participar de um assalto a um caminhão da empresa Philip Morris no município de São Caetano do Sul, no dia 30 de outubro de 2019.

Esses exemplos são poucos.

Mas se você parar pra lembrar, até o filme A Espera de Um Milagre era sobre um homem negro preso, acusado falsamente por uma mulher branca, de estupro e assassinato.

Isso não quer dizer que negros, como brancos, não cometam crime. O ser humano é capaz de praticar o crime. A questão é que a uns nós criminalizamos antes de qualquer crime, e outros, mesmo que roubem o Maracanã nas costas, jamais serão considerados perigosos.

Você talvez não enxergue raça no governo Bolsonaro. Mas ali está a supremacia branca. Tudo que o Estado Brasileiro é, é resultado da supremacia branca. Branco chega ao poder, seja no Estado, seja na cúpula do PSOL, e decide, e comanda. Quando o olho tá embaçado, não dá pra ver. Mas a hora que tu enxergar nitidamente, vai perceber que a mesma branquitude que manda tanque pra favela, é igual a que sufoca Negro Belchior e outras pessoas negras na esquerda. Carol Conka não merece perdão. Nego do Borel não merece investigação. Se eles erraram ou cometeram crimes, não podem ser julgados como humanos, mas linchados como brancos fazem, e ainda tem esse desejo em seu DNA, de bater neles, gritando: “seus criolo safado”. Confessa. Você branca, você branco, não tá interessado em resolver crime nenhum se há um negro. Quer mesmo é ver o esquartejamento dessa pessoa. Isso tá no teu sangue. Vem dos teus antepassados. Amigo, amiga, ser antirracista nestes tempos exige de você reconhecimento e terapia. Porque a coisa tá tão enraizada que ao defender o corpo negro, e sua integridade na sociedade e pedir JUSTIÇA, as pessoas disseram que eu defendi Nego do Borel, e uma mulher branca, do PSOL, me chamou de estuprador. Estão todos adoecidos. Pensando que vão libertar o Brasil, vão, na verdade conquistar novos espaços de poder, novas sinhás e novos senhores de Engenho, usando bolsa com a cara de Marielle estampada. O corpo negro é criminalizado. Mesmo que não faça nada. Precisamos falar sobre isso, todos os dias, e nos desarmar. O negro não é perigoso, não é criminoso, negro é luz, é vida, é o futuro.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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