O FILHO QUE ODEIA O AMOR

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O fundamentalismo nasce quando um dos filhos não aceita que seu pai seja amado por outras crianças. Quando uma outra criança, totalmente diferente, que mora em outra casa, que fala diferente de você, que se veste de maneira diferente, que canta de maneira diferente, quando essa criança olha pro seu pai e diz:

eu te amo,

você vai, imediatamente, ou estranhar essa declaração e reagir contra ela, ou vai entender que seu pai pode ser amado pela rua inteira, por motivos que você nunca saberá.

E você reagiria contra uma declaração de amor externa, exatamente por apenas isto: é uma declaração externa. Externa às dimensões do seu relacionamento com seu pai, construída diariamente, em casa, na comunhão da convivência.

Então você entende essa declaração como uma ameaça a esta dimensão. Capaz de levar seu pai embora. Porque você acha que seu pai PRECISA de você pra dizer A ELE quem ele pode amar ou deixar de amar.

Você é ciumento, imaturo e egoísta. Você pensa que só O SEU AMOR, ou A FORMA COMO VOCÊ AMA é a única forma de amar seu pai, e qualquer outra forma de amor ameaça sua relação já estabelecida com ele, e por isso você precisa aniquilar a outra criança e o amor que ela sente.

Pense nesse cenário, principalmente se estamos falando de um contexto em que você também é criança, e chega na escola, e todas as outras crianças, diferentes de você exceto pelo fato de serem também crianças, olham pro SEU pai e o chamam de pai, também, e o abraça, e estão igualmente felizes com ele, e andam de mãos dadas com ele, e você, criança, não ia entender isso, e se entendesse, não ia ficar feliz.

Em essência, é sobre isso.

Sobretudo porque, quando falamos de fé, estamos falando da criança interior.

Fé dialoga com o ente os mos, com o entusiasmo, com ter um Deus dentro. Somos todos crianças, na nossa fé. Adultos são os ateus. E chatos.

Mas é isso.

O “pai” foi primeiro identificado pelos hebreus. Depois repensado pelos seguidores de rabi Yehoshua ben Yosef, conhecido no Ocidente como “Jesus”. Daí, esse Deus foi enfeitado com centenas de práticas e crendices romanas, até se tornar o “Deus cristão”. E ainda depois, ele foi revelado a Maomé.

Depois foi ressignificado por Lutero, por Calvino, por Ellen White, por Spurgeon, por James Cone, pelo Rev. Martin Luther King Jr., e vem, em movimento, até hoje. Dentro dessas leituras, surgem os “filhos de Deus” que não aceitam o amor diferente do deles. Se vai oferecer um sacrifício no altar do MEU Deus, então vai fazer do MEU jeito. E quanto mais ciumento, egoísta e imaturo, mais eu me torno agressivo, radical e ofensivo a manifestação de fé do outro.

E é por isso que os seguidores de Malafaia não aceitam que um gay seja feliz, abençoado, e ocupe lugares maravilhosos e dignos no Reino de Deus. Porque os fariseus, seita radical e legalista dos tempos de Jesus, não aceitava que ele se comunicasse com prostitutas e pecadores. Mas ele, na sua missão profética, veio para os excluídos.

O problema é que esses fundamentalistas esquecem que nós podemos ser um povo exclusivamente de Deus, mas Deus não é um povo exclusivamente nosso. O povo de Deus pertence a Deus, e não Deus quem pertence ao povo, ou seja,

haverá outras pessoas, diferentes de você, que vão amar a Deus, com o conhecimento delas, com a fé delas, com a revelação ou a inspiração que foi dada a elas. Porque DEUS É PARA TODOS. Deus, o pai, é generoso e cheio de misericórdia, no seu abrigo cabem todos, de todas as cores, línguas, povos e raças.

Miami, junho de 2016, boate Pulse.

Omar Mir Seddique Mateen, muçulmano norte-americano de origem afegã, entrou na boate e atirou, matando pelo menos 50 pessoas. Ele declarou fidelidade ao Estado Islâmico.

O mundo tirou a oportunidade para aumentar a islamofobia.

A polícia fechou a rua, com grades, para a retirada dos corpos.

DO LADO DE FORA DA GRADE, estavam batistas, cristãos evangélicos, com cartazes dizendo que homossexuais vão morrer, e Deus é quem mata gays, que são pervertidos.

Entende?

Do lado de dentro, um filho que não entendeu que o pai pode ser amado de outras formas.

Do lado de fora, outros filhos que não entenderam a mesma coisa. Ambos, só diferem porque tem livros religiosos distintos. Mas um fundamentalista, quando vê o outro, eles apertam as mãos.

Um radical muçulmano mata, os radicais cristãos aplaudem.

Ou seja: matam de novo.

Fundamentalistas são iguais. Não importa a fé que professem.

Querem a mesma coisa. Aniquilar os outros filhos. No fim, só eles vão ficar de pé.

Nós estamos vivendo o crescimento do fundamentalismo evangélico brasileiro. Pastores infiltrados no Estado, mandando e desmandando. Malafaia, dia desses, tava vendo desfile militar ao lado do presidente. Nós vamos ver os fundamentalistas destruírem vidas. Nós vamos ver isso. A igreja fundamentalista é um animal selvagem, que ninguém para. Estamos diante do extremo. Das chamas e da barbárie.

Causada por filhos que não aceitam o amor.

Deus é amor.

Se alguém diz que é de Deus, e não ama seu irmão, nunca viu a Deus.

I João 4, 20.

Estamos diante de cegos. Que nunca viram Deus. E estão armados, matando a todos.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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