NENHUMA MULHER É UMA ILHA

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Foto de Mario Azzi Unsplash

Eram 9 da manhã, quando uma amiga me enviou um vídeo.

Era um vídeo de câmera de segurança. Nele, uma mulher sentada num sofá, com um carrinho de criança onde estava aquela que, provavelmente, seria seu filho, ou filha, e essa mulher apanhava.

A primeira imagem que veio na minha cabeça, sem filtro, nada, foi quando minha mãe, em pânico, disse que aquele cuja certidão de nascimento define como meu pai, havia puxado uma FACA pra matar ela.

Moraram juntos, mais de 30 anos.

Ela foi camelô, doméstica, caixa de supermercado, dedicou uma vida e toda sua saúde pra criar três crianças, na prática, sozinha. Ele não parava em emprego, não trazia dinheiro pra casa, ainda gastava o dinheiro que ela tinha, com cerveja, cigarro, ou simplesmente sumia com dinheiro e voltava devendo.

Toda minha infância foi dentro de um caminhão de mudança.

Morei em mais de 25 casas diferentes, na Zona Norte do Rio, em Cavalcante, Cascadura, Madureira, Abolição, Piedade, ruas diferentes, casas aos pedaços, perdendo móveis, de mudança em mudança, minha mãe sustentando uma família, tentando ter esperança, e ele vivendo de maneira dissoluta e irresponsável.

Minha mãe viveu uma vida de humilhação, por décadas.

Minhas irmãs, ambas vítimas de abusos e violências dos ex-maridos. Minha mãe veio com elas para o Rio de Janeiro, saindo de Recife em 1968, numa pobreza do caralho, porque ela já tinha sido violentada pelo primeiro marido.

E no Rio, trabalhando como caixa de supermercado, numa casa de dois cômodos, SEM ÁGUA e banheiro, nos fundos da casa de uma mulher branca extremamente arrogante e racista, ela então conhece este homem, que a engravida, sem que ela tivesse planejado. Em 3 de dezembro de 1974, nasci. Sem roupa pra sair da maternidade, foi a irmã dela, minha tia, que conseguiu um vestido de menina, pra que eu tivesse alguma roupa pra sair da maternidade naquela terça feira de chuva. O homem não foi lá. Três dias depois, estava minha mãe de volta ao trabalho, no supermercado. Com dores, com corrimentos, essa é a história.

Um homem cuja família, de pessoas negras, do candomblé, não encontrou na paternidade um desejo, uma vontade de evoluir como pessoa.

Cresci sozinho, sem referência de pai, de homem, duvidando de todos os homens a minha volta. Até pouco tempo, tinha ENORMES dificuldades em conversar com um homem. Me afastei dos círculos masculinos. Me encontrei nas falas, nas escritas, nas formas de ver o mundo, nos desejos, nos anseios de mulheres, e nunca entre os homens.

Isso não me fez uma pessoa melhor. Centenas de mulheres odeiam o que eu escrevo, e estranhamente, 70% dos meus leitores não são eles, são elas.

Minha relação com mulheres nunca foi mar de rosas. Divirjo, brigo, mando a merda, inimigas, várias, por outro lado, tenho 4 ou 5 pessoas na minha vida, que se não as ouço, não tomo nenhuma decisão há décadas. E justamente por não serem homens. Eu não confio em homens. E isso não é bom, entenda. Isso é um efeito colateral muito ruim.

Mas isso expressa o tanto de desgraça que é disparada nessa cena no vídeo.

Uma mulher apanha. São 36 mil mulheres que apanham POR DIA segundo o Ipec. São 25 mulheres sofrendo violência doméstica POR MINUTO.

COMO SE ISSO JÁ NÃO FOSSE EXTREMO, ainda temos a reverberação disso. Nos familiares que veem isso. A mãe da mulher que apanhou do DJ Ivis, presente na sala. A criança, ainda de colo, que não entende nada, vai crescer sabendo que o pai foi preso em rede nacional. Essa criança não vai ter o pai como referência. Mais um Anderson no mundo, que só não dá um tiro na cabeça, por causa de mulheres que insistem em segurar o tecido social já tão rasgado pela violência masculina. Nenhuma mulher sofre a violência sozinha. Filhos, mãe, irmãos, irmãs, todo mundo é humilhado junto.

O estrago feito por Iverson é incalculável. Pra uns, ele é um exemplo. Pra outros, ele só faz retroceder o desejo de uma sociedade pacífica.

Pra escrever esse texto, eu escrevi dois outros, durante a semana. Estão aqui, e peço que leiam, compartilhem.

Eu conversei com 4 amigas, que apanharam dos companheiros, uma delas na pandemia, e agora está divorciada. Todos moravam juntos. Houve o caso de homens que evoluíram as agressões, e houve o caso do sujeito que, DO NADA, explodiu na surra.

Elas estão destruídas, se sentem humilhadas, e é uma sensação desgraçada.

Precisam de meses, anos, pra conseguir se relacionar com outro homem, e quando conseguem, ficam alertas 24 horas, pra não passarem por isso de novo.

Eu não consigo encontrar uma só resposta pra isso acabar. Penso que lei, que já tem, precisa ser aplicada. Mas não vai ser aplicada, num país em que as Delegacias da Mulher são fechadas. E olha que 90% das cidades não tinha DEAM. Homens precisam ser encaminhados pra terapia de abusadores. Tratar o potencial criminoso. A educação, a lei, a prevenção. As redes. De mulheres, e de homens que topem caguetar o safado que faz isso. É um número muito grande de mulheres passando por isso, pra que possamos tirar o corpo fora. Iverson tá preso, e não se assuste se daqui uns dias ele for solto.

O Brasil odeia mulheres. Mulheres são alvos.

Temos dois extermínios em curso: do povo negro, e de mulheres.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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