MULHERES NEGRAS DEIXARAM UM RECADO.

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Acordei sabendo que Raven Sanders, 25, prata em Tókio no arremesso de peso feminino, subiu no pódio e cruzou os braços. Esse X significa: Onde TODOS os oprimidos se cruzam.

Patricia Mamona, 32, filha de angolanos, prata no salto em altura. A imprensa em Portugal está comendo vidro, de ódio, por ter que chamá-la de portuguesa.

Rebecca Andrade, 23, foi prata e ouro na ginástica, fato inédito, com a trilha Baile de Favela, na cara de todos, e das feministas brancas, e marcando limite, e respeito, pela periferia.

Simone Biles, 24, decidiu não competir, pra cuidar da própria saúde mental, chocando o mundo, numa atitude corajosa.

A mensagem de fundo, que você finge não ver, está aí. Se fosse combinado, não seria tão perfeito.

Essas 4 mulheres desafiam suas sociedades, e o mundo, de uma vez só.

Saunders, negra e lésbica, traz no seu corpo muitas opressões.

Proibida de protestar pela Regra 50, que impede manifestações de atletas, ela subiu no pódio e não teve medo. Cruzou os braços, e mostrou que estava ali, naquele momento, pra usar a visibilidade do mundo pra dizer que ela tem uma mensagem. E que atleta não é um alienado. Bem, pelo menos não uma atleta negra.

O recado de Saunders foi pro seu próprio país, e para os donos das Olimpíadas: os homens brancos. Porque eles, além de serem os chefes dos jogos, decidem quem pode e quem não pode falar.

Isso porque eles, que não passam por nenhuma opressão, obrigam todos a serem como eles. E atletas brancos alemães ou suíços, com seu silêncio e falta de luta, deixam tudo mais difícil pra atletas negros. Quando um atleta branco dá as costas pra esse assunto, ele fortalece o homem branco dono dos jogos, e do sistema.

Mas Saunders meteu o fodace. E eu faria o mesmo. Como, nos pódios onde já subi, fiz.

Lembro de ter participado, ao lado de Gleen Greenwald, do evento de lançamento do novo logo da TIM.

O presidente da TIM, todos os executivos. Casa cheia de gente branca, na Casa das Caldeiras. Eu nunca estive diante de uma platéia tão privilegiada. Era junho de 2016, e estávamos perto do impeachment de Dilma.

E na produção me disseram: “Anderson, não pode falar de política”.

Me pagaram bem, mas pra eu ficar quieto.

Taquei o fodace.

No fim da minha fala:

“Vocês discordam, mas eu tenho uma coisa a dizer:

É golpe.”

Ficaram putos. E eu disse: nunca mais me chamam.

Dito e feito.

E foi golpe.

Patricia Mamona está nas páginas dos jornais em Portugal hoje.

Aqui, temos uma máxima.

Se o negro vence, é português. Se é pobre, ouve dos portugueses:

“Volta pa tua terra”

Aqui, se você tem dinheiro, ou é bem sucedido, é português. Se não, vira um imigrante ilegal, trabalhando nas obras da construção civil, nas ruas, nas periferias. Portugal, racista e machista, ODEIA ter que chamar Particia de portuguesa.

Mas ela é. Nascida aqui, vivida aqui. Essa lei de sangue não mais nenhum valor no mundo. Há muitas pessoas negras nascidas aqui que Portugal não dá a cidadania. A PESSOA NASCE EM PORTUGAL, MAS É CABO VERDIANA. Angolanos, moçambicanos, africanos, nunca são aceitos na Europa, e mesmo ex-colônias, são criminalizados pelos portugueses. De todas as ex-colônias, o Brasil é o único que entra sem visto, tem direitos de igualdade e entrada no mercado de trabalho.

A vitória de Patricia é uma surra na cara desse Portugal branco e racista, que hoje vai ter que aplaudir mulher negra, única notícia relevante nesse país do tamanho de Piracicaba.

Rebecca Andrade está sorrindo. E é de você.

Você que odeia favela, odeia preto, e principalmente você que quer dizer pra favela O QUE É CULTURA E O QUE NÃO É.

Se é de direita, diz que funk não é música. Se é progressista, diz que “Baile de Favela” é sexista. Mas o funk, sua cultura, a favela e essa música são um conjunto de elementos que FORMAM Rebecca. Ela não é uma atleta separada da sua cultura. Ela É a própria cultura.

E vocês, de fora do morro, nunca vão entender como se dá o desenvolvimento da sexualidade e como nós do morro enxergamos o mundo. E ele não passa pelas feministas brancas da UFRJ.

A putaria, o funk putaria, é um elemento fundamental no discurso negro do Rio, e da periferia. Rebecca faz você aplaudir, mas faz você ficar puto da vida, porque ela não veio pra ser disciplinada por você.

E Simone Biles é ouro. Ouro em tudo.

Veio chamar atenção para a saúde mental de todos os atletas, e para a nossa saúde. Veio nos lembrar que o que importa não é um pedaço de ferro pendurado no pescoço, mas sua dignidade. Está sendo odiada por patrocinadores, mas está livre, e feliz consigo mesma.

Caminhou todos esses anos, pra dizer: Eu sou dona de mim.

A mensagem tá aí.

Saunders clama por liberdade. Patricia nos vinga. Rebecca é a favela inteira. Biles é a coragem pra deixar onde não se serve amor.

Os anos vão passar, e as Olimpíadas serão lembradas, por causa delas.

E os homens brancos, espero, serão passado.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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