MIGRAR É TER CORAGEM

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Ilustração: Claudio Brites

Logo que eu cheguei em Lisboa, vindo de Guarulhos, fui andar pela cidade, e me apresentar nas autoridades de imigração.

Eu cheguei dia 5 de dezembro de 2018. Dia 7 eu saí muito cedo de manhã, com a minha companheira, que você vê nesta foto, e pegamos o metrô pela primeira vez nessa terra.

O metrô era menor que os do Rio e São Paulo. Nas estações não havia propagandas como nas nossas. Era um ambiente visualmente limpo, mas naquele dia eu achava vazio.

A gente se acostuma com a poluição visual da Coca Cola, McDonald´s, supermercados, tudo que se pode vender pro trabalhador no caminho.

Aqui, não.

Há estações que parecem estar abandonadas há décadas. Paredes de um azul desbotado, uma pintura antiga, infiltrações, com a pandemia ficou tudo mais vazio. A venda de bilhetes de metrô caiu pela metade.

Era muito cedo, algo como 6 da manhã, nosso corpo ainda sentindo o jet leg, era como se fosse 3 da manhã pra nós.

Mas saímos de um bairro chamado Telheiras, que muito me lembra Jacarepaguá. Só que vazio. Portugal tem menos gente. Nós moramos num país de centenas de milhões. O Rio de Janeiro tem mais gente que Portugal.

Eu lembro do cheiro da manhã de Lisboa.

O cheiro das plantas, pela manhã, um frio da porra.

Cheguei em dezembro, inverno.

Eram 6, 7 graus. Três dias atrás eu estava vivendo imerso em 40 graus. Pense num desespero. O casaco que eu comprei num brechó em Floripa não deu conta do frio aqui. Nossos casacos são de papel marchê.

Liguei o Google Maps, e fui andando até o metrô. Compramos as passagens, e descemos nessa estação, de nome Parque.

Eu não sabia, naquele tempo, que um dia ia morar próximo a ela. E que o Parque Eduardo VII seria um lugar tão comum pra mim. Eu não sabia nem onde eu ia morar, na verdade. Estava de favor na casa de uma família portuguesa, que nos acolheu, nos deu teto e comida.

Então eu andei por essa estação, por volta das 8 da manhã, ela totalmente vazia. Que negócio estranho. Fosse Linha 2 Pavuna, em Del Castilho, estaria lotada.

Eu subi a estação, vendo os azulejos azuis, motivos marinhos, parecia estar dentro de um grande aquário. Tinha um mapa desenhado na parede, e nele, o Brasil. Eu fiquei olhando pro Brasil desenhado ali. Eu não estava mais no Brasil. Que sentimento diferente.

E ao mesmo tempo, já não tinha mais documentos.

Estava numa sociedade, na condição de indocumentado.

Não tinha uma autorização de residência, um RG, citizen card, CPF, nada. Só meu passaporte, para confirmar quem eu era. Mas alienado daquela sociedade.

Olhei pros meus documentos brasileiros e pensei.

Aqui eu sou invisível.

Os que vem com visto, chegam pela porta da frente.

Nós não.

Então saímos na rua, um vento gelado, e fomos até a autoridade de imigração, o SEF. Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Agora eu era um estrangeiro. Eu havia cruzado uma fronteira.

Fiquei numa fila, e ali a ficha foi caindo. Quando eu vi que na fila tinha africano, árabe, indiano, chinês, brasileiros. Uma fila enorme, que se formava muito cedo, antes do sol nascer, para que os indocumentados buscassem documentos. Papéis, assinaturas, carimbos, sem os quais não eram “legais”. E não sendo legais, não tinham entrada na sociedade.

Saímos de lá sem documento.

Levamos quase dois anos para ter os documentos. Hoje, temos todos. Lembro, no dia em que recebi meu citizen card, eu fiquei olhando pra ele e pro meu RG, emitido em São Paulo. Dois anos depois, eu era um registro civil novamente.

Isso parece pequeno.

Mas só quando você fica na margem de uma sociedade, sem documentos, de forma precária, por quase dois anos, você entende como isso pode afetar sua cabeça. Há pessoas que ficam 8, 10 anos sem documentos. Algumas morrem sem eles. Algumas são expulsas.

A burocracia mata o humano.

Sempre quando passo na Parque, e entro, lembro deste dia.

Poucos segundos antes de sair pelas ruas de Lisboa pela primeira vez, e cruzar a cidade, pela primeira vez. Nessa manhã, sem documentos, depois de ir na imigração, sentamos num banquinho na Avenida da Liberdade, e tomamos café com leite, e um pãozinho. Eu estava feliz, de mãos dadas com minha companheira, naquele dia. Naquele frio, mas o dia com sol. Muita gente nas ruas, tudo era novo pra nós. Cada lugar que pisava, era um lugar que eu estava pela primeira vez. E não a turismo. Tinha que decorar os caminhos, eu ia viver ali.

Daí que toda vez que volto a essa estação, volto pra esse dia. Pra esse momento. Já sem Brasil. Sem documentos. E totalmente entregue a sorte.

Migrar é ter coragem.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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