É FACIL SER ATEU NO LEBLON

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Colagem: Claudio Brites

É mole ser ateu no Leblon. Quero ver ser ateu no meio do Jacarezinho, às 7 da manhã do dia 6 de maio de 2021.

O camarada revolta comigo porque eu expliquei os motivos que levam uma pessoa pobre e de periferia se tornar evangélica, e nisso critico a esquerda e o Estado que não dialogam nem constroem pra essas pessoas, e vem dizer que eu sou um iludido, patife, mentiroso.

Esquerda brasileira tá pior que artista que não pode ouvir crítica. Se o sujeito mora na Gávea, nem precisa ser só lá, mas tem tudo, algum guardado no banco, leite e carne na geladeira, um carrinho pra dar uma ida no mercado, plano de saúde em dia, família saudável, esse cara vai achar que precisa de Deus?

Amigo, o fenômeno religioso brasileiro passa fundamentalmente pela desigualdade e pela escassez. É bem provável que, se tivesse mais escola, mais professor vivendo com dignidade, mais água limpa, mais emprego, mais saúde, mais cultura, mais teatro, mais país, mais vida, mais iogurte pras criança e menos cemitério, menos tiro, menos presídio, talvez não tivesse tanta igreja. Se você não compreende isso, não vai compreender o que leva uma pessoa buscar uma resposta pra sua realidade cruel e violenta, quando a sociologia não explica mais, quando a antropologia não explica mais, quando a economia não explica mais, quando a psicanálise não explica mais, então essa pessoa prescinde da experiência religiosa pra que, de alguma forma, desesperada, exista uma explicação mesmo que sobrenatural, para o que naturalmente ela não encontrou respostas.

E ela não cursa USP.

Ela vê Datena. Se informa pelo zap.

Essa pessoa, além de invisível pra sociedade, pois é pobre, negra, sem educação crítica, é uma pessoa que não tem em si todos os recursos para discernir um país de realidade tão complexa quanto o Brasil.

Aquela garçonete negra, bem reprimida dentro de um uniforme de padaria nos Jardins, toda embalada numa roupa serviçal, pra trazer teu croassã e teu suquim de maçã, que custa uns 32 reais, essa menina não entende porque ELA nunca pôde comer uma merda de um croassã de 32 reais, só o salgado massudo de frango desfiado sem gosto dos quiosques da Estação República, na baldeação da Linha Amarela.

Ela vai ficar DIAS pensando porque não pode ter acesso. Como dentro do Jacaré, ou no Jardim Ângela, as pessoas ficam pensando porque não podem tirar férias em Marataízes, nem entrar no Jockey Club pra ver uma corrida de cavalo.

Essas pessoas olham para a vitrine da Apple, e veem um celular que pode custar 15 mil reais, e elas pensando que se tivessem 15 mil reais, reformavam a casa, compravam uma geladeira, um berço novo pra filha, emprestavam dinheiro pra amiga, abriam uma vendinha de bolo de pote.

Talvez saíssem da favela. Porque elas também não entendem, PORQUE SÓ ELAS LEVAM TIRO, vocês, inteligentes leitores brancos do asfalto, NUNCA.

Então a resposta migra pro fenômeno religioso.

Porque o fenômeno religioso brasileiro nasce na desigualdade.

O que poderia ser o Gênesis brasileiro:

No princípio criou o Brasil a fome e a guerra.

E a fome era sem forma e vazia, e havia trevas sobre a face de cada morador. E disse Deus:

Vem pra igreja.

Leonardo Boff diz isso, só que de uma maneira zero porcento otária. Eu digo cheio de vacilação. Mas no fundo, é isso.

Em outras culturas, sei lá. O fenômeno religioso nasce da experiência da transcendência, do observar a natureza, da epifania, aqui no Brasil não, aqui nasce porque o maluco precisa encontrar respostas. Respostas pras milhares de angústias que ele vive, resultantes da desigualdade e pobreza.

Quanto mais privilégios, menos compreensão você vai ter dessas pessoas. Sejam privilégios financeiros, sejam de educação.

Na Alemanha, Lutero criou o protestantismo porque era acadêmico, bolsista, e teve anos pra ficar socado numa sala estudando. Criou um braço do cristianismo por pantim.

No Brasil, Lutero não guentava meia hora de morro.

E quando você me diz que é ateu,

você é ateu de que Deus?

Porque “Deus” é tudo aquilo ao qual atribuímos valor absoluto. Então o dinheiro pode ser seu deus.

O seu corpo fitness pode ser seu deus.

O seu perfil no instagram bombado pode ser seu deus.

Sua carreira muito badalada.

O sexo pode ser seu deus.

A comida.

O Rivotril.

O psicanalista pode ser seu deus.

Como já diziam, a psicanálise é religião de rico.

Então, você é ateu. Certo.

De qual Deus?

Você não me agride ao se dizer ateu.

Você pode ser o que quiser.

Mas nós, Brasil, estamos no meio de uma madrugada tempestuosa. A definitiva noite em latinoamerica. E se você prefere ficar de pirraça que entender que os teus outros irmãos brasileiros da classe trabalhadora estão no mesmo barco que você e você precisa exercer o diálogo, vamo morrer é todo mundo. E já tamo. Pouco a pouco. Ou na tsunami da média móvel. Ou nas operações da polícia.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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