Como esse país ainda não está em chamas?

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Foto: reprodução Extra

Na Glória, bairro do Centro do Rio, o motorista do caminhão de ossos encosta na calçada, abre a caçamba.

A reportagem de capa do Jornal Extra, onde eu sempre quis ser colunista, é de cortar o coração e a alma no meio.

Eu vivi a pobreza, minha família passou por momentos de muita necessidade, mas nunca, mesmo morando na periferia, nunca vimos uma cena como esta que o Extra mostrou hoje, com fotos e vídeos.

A imagem foi tão fudida de ver, que eu passei o dia quieto.

Como, num país com tanta riqueza, tanta gente rica, tanta gente lotando shopping, tanta gente comprando roupa na ZARA, como tem milhões catando OSSO e RESTO de comida no lixo.

As pessoas esperam o caminhão chegar.

Ele para, e o motorista, José Divino dos Santos, o Divino, abre a caçamba e deixa as pessoas entrarem no veículo pra catar osso e pelanca.

Divino, de 63 anos, trabalha com a coleta diária do descarte de mercados como o Guanabara, Mundial, Pão de Açúcar, e restaurantes. Ele vai, todos os dias, nestes lugares, e vai nos fundos, onde esse resto é descartado, e pega, em bacias e sacos.

É osso, cartilagem, gordura densa, que não dá pra cozinhar.

É o fim da cadeia.

Divino tá nisso há anos.

E ele, ao jornal, disse que nunca viu isso acontecer. A fila está cada vez maior, e as pessoas trazem no rosto a dor, a vergonha e uma fome, um desejo de comer um pedaço de carne e, um bife.

A conversa entre eles é essa. “Quem dera um bife”.

São pessoas em situação de rua, e pessoas desempregadas.

Mulheres mães, com 4, 5 filhos. Que perderam o emprego, algumas antes da pandemia. E com seus 50 anos, sabem que não vão voltar pro mercado.

Divino disse ao Extra:

-Tem dias que chego aqui e tenho vontade de chorar. Antes, as pessoas passavam aqui e pediam um pedaço de osso pra dar ao cachorro. Hoje, elas imploram por um pouco de ossada pra fazer comida. Antes, eram duas, três pessoas em situação de rua, hoje, tem dia que tem umas 15 pessoas.

O sujeito não segura a marimba, e chora.

Divino conhece a pobreza. Ele não trabalha nisso, porque é um trabalho de glamour. Ele tá nessa pela própria necessidade.

O Brasil tá imerso na miséria.

Nós começamos o século numa curva ascendente.

Foi mentira o que disseram, que o PT faliu o Brasil.

Eu era um sujeito desempregado, morando na favela de Vila Aliança, quando o PT chegou ao poder. Quando o PT saiu, eu era um educador popular na periferia, com um livro lançado pela Cia. das Letras, falando da minha realidade.

Vocês, que elegeram Bolsonaro, tem sangue nas mãos.

Tem fome nas mãos. Tem ódio na alma.

Isso que tá acontecendo é fruto da escolha de vocês.

Se você tá indo na feira, e precisa de CINQUENTA REAIS pra voltar pra casa com um cacho de banana, meio quilo de batata, ovo e qualquer outra verdura, se você olha pra sua geladeira e falta leite, falta carne, falta manteiga, falta óleo, falta gás,

e se com isso tudo você diz: Bolsonaro 2022,

você MERECE o que tá acontecendo.

Você merece. Merece, de merecer, você lutou por isso.

Estamos a um passo de 600 mil mortes.

E Bolsonaro está rindo. Seus filhos, rindo. As igrejas evangélicas, lotadas.

Quem consegue dormir feliz com o Brasil que construiu ao eleger esse homem, deixou de ser humano. Porque ser humano é ainda estar vestido de humanidade. E se tu acha tudo isso normal, tu não é mais gente.

Nós estamos sendo COZIDOS todos os dias. Um dia por vez, pra não sentir o fim desse país. Não há respostas. Não há caminhos. A gasolina nas alturas. A luz nas alturas. Uma pessoa que conheço foi comer um salgado que lhe custou NOVE REAIS, numa padaria na Zona Norte do Rio.

Eu ajudo gente que me pede dinheiro pra comprar SAL. As contas não fecham, as compras deixam de fora sal, açúcar, o básico.

Nós estamos no caos, porra.

E como esse país ainda não está em chamas?

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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