BBB – Aplaudindo o inimigo

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Como Boninho e a Globo lucram com a exposição de minorias no BBB

Não, não. Não é um texto “abaixo a Rede Globo”, ‘Globo Lixo”. Eu já trabalhei lá, inclusive a única vez que tive plano de saúde na vida e pude fazer meus exames de diabetes, foi quando trabalhava lá.

Mas assim, vagabundo ser grato no bagulho, não é sacar o toba e pedir pra você torar minha bunda. Quem tem limite é município e o meu butico.

Lá na Globo não tem “A” Globo. Tem papo de 10 mil funça, diretor pra caralho, uns 20 cacique e os filho do ome, que apita e pega o agrado deles, todo mês. Eu tava lá embaixo na pirâmide, carregando pedra. Acima de mim, os comediante. Então se os comediante tava em cima de mim, veja bem como era fundo o poço onde eu tava.

A Globo é muita gente, e tem muitos interesses ali nos corredores, em conflito. Não tem unidade nem na Universal de Angola, querido, vai ter na Globo. Tem diretor querendo esfaquear diretor, e diretor com mira melhor que o Adélio. E tem os funcionário da faxina, da manutenção, da pintura, os motorista de carrinho de artista, os cara da segurança, as recepcionista, os marceneiro que faz estúdio, ninguém ali é zumbi fechadão com a Globo, tudo que Manoel Carlos mandar, faremos todos. Como já diz o grande cientista sem paciência Einstein: dein Arsch.

Fora isso, há os interesses do topo da pirâmide, não importa qual topo, porque a Globo é uma pirâmide de vários topos. A gente nunca sabe, na real, quem é “A” Globo, a mão oculta que move aquilo ali, talvez os Marinho, se bem que 2021 tá aí, pode rolar uns plot twist. Mas o Bonner mesmo é que não.

De modo que num ponto desse ecossistema temos o Boninho. Ou Boni II, filho do Boni I, a dinastia Bonifácia. Boni I foi o homem do Marinho logo na arrancada da emissora. As novelas, os programas de auditório, o Chacrinha, tudo passava pelo Boni 01.

O Boni 02 era um jovem bem nascido na década de 70, curtindo piscina, viagem pelo mundo, grand mondé, foto com Pelé, tratado como nobreza, uma vez que o homem que decidia os rumos da programação na TV Globo era o pai dele. Ele trabalhava. Entrou em 78 na Excelsior, e se virava produzindo clipe, projetos, mas vamo combinar: tudo fica mais fácil quando você tem um pai que ganha um salário do tamanho do PIB da Finlândia. Não tira o mérito do cara, MAS TAMBÉM NÃO É BEM ASSIM né. “Comecei trabalhando duro”, pá. Não. Menos. Começou na vida adulta não sabendo o que era um boleto. Aí sim.

E nas décadas de 1970 e 1980, praticamente só tinham dois seres humanos importantes no mundo: o cara que podia apertar o botão em Moscow e explodir a merda toda, e Boni, no Jardim Botânico.

“Boni te dá o leitinho na boquinha. Tu que é safado e safada, bebe. A maior sacada do Diabo é vender aquilo que tu gosta.”

O mundo como você conhece foi criado por esse cara. Não tô falando da internet. Tô falando de Horário Nobre, Novela das 8, Jornal Nacional. Praticamente não tem Brasil sem esses três elementos. Pode relinchar de raiva progressista, mas é verdade.

Cê pensa Xuxa, na década de 80. Pensa na coroa que mandava nela. A Marlene. Pensa no cara que mandava na Marlene.

Isso.

Não apenas Marlene e Xuxa. Cid Moreira, Bussunda, Chico Anysio, Renato Aragão, o Boni mandava no Telê Santana, no Figueiredo, no Apóstolo Paulo, no caralho todo.

E esse poder todo, por causa das articulações do home. O Marinho pai nera de bobera. Pode odiar o cara, verdade. Mas o cara era jogador. Até Silvio Santos comeu na mão do cara. E olha que o décimo sexto avô do Silvio foi o cara mais importante da Europa.

Boninho cresceu numa casa vendo o lado de dentro do jogo, do poder. A escola do Boninho era em casa e o pai alinhava a parada.

Poderia ser uma história de amor. Mas TV vende o leite que vai na mamadeira do Satanás. A gente odeia o Satanás, mas um leite na boquinha, é aquela parada. Uma tentação que a gente cai. Casa do Boni é, com certeza, o escritório de Belzebu no mundo.

Mas a casa de Belzebu não é um lugar em chamas, cheio de demônio com rabo, uns caldeirão. Embora “Caldeirão do Huck”, de trás pra frente, significa: “Candidato do DEM”, e como todo mundo sabe, o DEM é o partido do demônio.

A casa do Belzebu é bem frequentada. Tem boa comida, bons escritores, intelectuais, artistas, músicos. Coisa fina. Almoçar com o Boni era fechar qualquer buraco psicanalítico que houvesse. Você vencia na vida. Pegando aqueles talheres de prata, comendo naquelas louça manoelina, aquele brócolis cultivado em Nantes, na França.

Alcaparra. Na casa do Boni com certeza tinha alcaparra. Acho que a primeira família a comer alcaparra foi a dele.

O Boninho foi entrando, nos espaços que o pai, DISTRAIDAMENTE (rs), deixava.

Ele tá lá. Desde 2002 entrega o BBB.

Faz tudo na Globo hoje, centraliza e mantém a dinastia. Faz isso sob reclamações de corredor. Muita gente diz que ele grita demais, dá esporro demais, é escroto demais.

Mas é o leite da mamadeira do Satanás.

Não se pode dizer que a Globo esteja totalmente contra os valores e a civilização, porque esse título me pertence, mas também não se pode botar na conta do Boni 2 a culpa de todos os males do mundo.

Boni te dá o leitinho na boquinha.

Tu que é safado e safada, bebe.

A maior sacada do Diabo é vender aquilo que tu gosta.

Tu gosta de fumar. Ele não vai te vender alface. A TV amplifica o desejo por aqui que nos torna pessoas mais embriagadas, anestesiadas.

E álcool e anestesia é ótimo. Considerando a dose.

Boni 2 entregar essa edição em 2021, é colocar a mão no carnegão do cu gostoso do Satanás e tirar o LEITE ÍNTIMO dessa geração:

A hipocrisia.

A maior característica do brasileiro é a hipocrisia.

Mas existem outros meios, que não a TV, pra resolver isso, ou amenizar.

A TV só joga na nossa cara, com patrocínio FIAT, e a gente desliga a TV achando aquelas pessoas umas putanhas. Ato contínuo,

a gente faz alguma merda pior que a deles na casa “mais vigiada do Brasil”. A diferença é que na nossa casa, as câmeras não exibem 24 horas pra milhões assistirem. Ou seja, não existe inocente, existe gente que não foi descoberta.

A gente, que trampa rede social e fala sobre algum tema de reflexão social, sabe disso.

Aí surge um outro problema.

A nossa imaturidade pra dissociar as personas da TV aos discursos de movimentos sociais.

“Todos os jovens tem uma reputação, que a bem da verdade, se confunde com ego. E precisam mantê-la. E a métrica disso é o like. ”

Além de não percebermos que aquele cenário “sem roteiro”, tem roteiro sim. Joga um monte de perfil conflitante junto, de pautas, gêneros e trajetórias juntos, e o roteiro SEMPRE vai dar em merda. E o roteiro do BBB é sobre como dar em merda. Uma geração que usa redes sociais e discursos sociais como bandeiras e componente integrante do se avatar no mundo, já nasce com reputação pública.

Todo mundo no Twitter pensa que é importante. Precisamos falar de BBB, mas também dessa geração.

Quando o BBB começou, boa parte da juventude que hoje destroça a Carol Conka nas redes tinha 2 anos de idade. Essa geração cresceu tendo BBB como um tipo de instituição da TV, assim como pra minha foi o Jornal Nacional, do Boni 1.

Mas essa geração é digital. Tudo que procuram, de comida à sexo, está no smartphone. Essa geração foi chamada pela DM9 de “perfis digigráficos”. São pessoas cuja personalidade não existe em sua totalidade no mundo off line, mas elas PRECISAM da sua persona digital para “existirem integralmente”.

Ou seja, você é uma jovem de 18 anos hoje, você é alguém “aqui”, ao vivo, um outro alguém no Twitter, ou outro alguém no TikTok, e assim por diante

. Não é mais um você, mas “vocês”. Não importa o número de seguidores, seja fazendo comentários óbvios e curtos sobre questões sociais, seja dançando no TikTok, você hoje não pode existir apenas no “analógico” e muito menos em apenas uma rede social. Você TEM QUE existir em várias, se informar nelas, aprender nelas, se afirmar nelas.

Aí começa a merda.

Todos os jovens tem uma reputação, que a bem da verdade, se confunde com ego. E precisam mantê-la. E a métrica disso é o like.

No game dos likes, você consegue aumentar sua reputação de forma ativa, quando fala algo que viraliza, ou de forma passiva, quando falam de você.

Mas você fica, depois de um tempo, DEPENDENTE do like diário. O meu like do dia, nos dai hoje. Ficar um dia sem um like, é não ser amado. Por isso, dá-le novas danças, mais biquíni, mas exposição do corpo, mais sexualização da adolescência, mais soft porn travestido de liberação do corpo, mais discurso heroico, mais síntese fodona da realidade, mais elogios sobre você.

O problema começa quando o que fazem sobre você não é um elogio. E se percebeu que a prática do constrangimento público feito por internautas por volta de 2014 contra marcas funcionava, mas aos poucos, O CONSTRANGIMENTO À PESSOAS também. As pessoas eram xingadas em massa, expostas em massa, e a isso deu-se o nome de ‘cancelamento’.

A geração do ‘tombamento’, se tornou a geração ‘cancelamento’. Tombamento inclusive é conceito retirado de música da Conka.

Então todo mundo vigia pra que sua participação ativa seja muito amada, “likeada”, ou partilhada, e que o que falam sobre si seja sempre muito positivo, legítimo, elogioso e validador.

Uma merda né. Essa juventude tá nessa. Preocupadíssima com o que falam dela.

E isso envolve minorias?

Sim.

Em 2013, as redes sociais passaram a ser amplamente usadas para dar voz para pessoas de minorias: favelas, pautas raciais, de gênero. Em 2009, esse processo começa quando as políticas de Lula permitiam a compra de celulares, a chegada do 3G, e do próprio Facebook. É possível dizer que o “ativismo digital” começa nesse tempo, inclusive, é a minha geração. Eu usei muito a rede pra desafiar a PMERJ. Essa geração usa pra desafiar pessoas.

No meu tempo, a gente passava por cima das pessoas, elas ti

nham contrariedades, a polícia militar era o alvo e a morte de pessoas negras no morro. Hoje, se uma pessoa ESCREVE UMA VÍRGULA NO LUGAR ERRADO, isso se torna em reação negativa pra ela. Então ela entra numa crise. E em alguns casos, depressão, autoflagelação e suicídio.

O cancelamento é uma arma. E não é uma arma de movimento social, é uma arma DESTA geração, que se nutre de relações egolátricas nas redes.

Mas onde entra a minoria?

Há muitas vozes negras, LBGT+, que disputam narrativas diariamente nas redes, como microcanais de comunicação. Na verdade algumas dessas pessoas tem milhões de seguidores. E essas pessoas, pensando e escrevendo a sociedade, construindo seu perfil digigráfico nas redes, cuidando da sua reputação, entra numa cadeia: a de ser ética todo o tempo.

E aí que o bicho pega. NINGUÉM É SANTO.

A internet não nos tornou menos machistas, racistas, xenófobos, porque a INTERNET NÃO É UMA ESCOLA. Não é um movimento. A internet é a internet. Vende coisas, tem mapas, entrega teus dados pra bandido.

Mas o tempo passou e o estrago foi feito: pessoas acreditam que na internet somos todos puros, nunca erramos, somos fadas sensatas.

Além de não sermos isso, some ao fato que: 2020.

A saúde mental dos brasileiros, de qualquer idade, está tota

lmente fudida.

Estamos em buscas de referenciais de lucidez num mundo doente e enlouquecido por vozes de líderes como Bolsonaro. Então nos desesperamos em busca dessas referências, ou nos iludimos pensando que podemos ser. E a realidade se impõe, e você falha miseravelmente.

Num contexto de desemprego, insegurança, pandemia global, extermínio de mulheres e pessoas negras, fome, crises institucionais, uma geração sem expectativas se joga num game de reputação, e quando ligam as câmeras, fica nítido que somos apenas humanos.

E o humano não tem mais lugar hoje no mundo.

Todos os negros no programa foram não porque “queriam estar lá” por causa do 1 milhão e meio de reais. É porque a proposta é sempre colocada de forma deliciosa e tentadora. Boninho sabe como convidar. A Globo sabe como criar a atmosfera de desejo. Eu sei o que eu tô falando, o trabalho na Globo é criar em você o desejo de entrar lá.

E essas pessoas se sentem reconhecidas com o convite, e por causa da gratidão do reconhecimento, aceitam. E claro, há o dinheiro, mas elas sabem que pode ser difícil. Por outro lado, são artistas, não mais anônimos, como em tantas outras edições. E famosos tem ego. Ego se trata em terapia, mas a Globo sabe que é uma massagem pro ego um convite desses. No fim, as pessoas ali são presas fáceis num sistema malandro que ordenha o leitinho do Satanás. É CLARO que há escolhas individuais, maliciosas, conscientes, nesse processo. Ninguém é santo quando diz que aceita. Ninguém é santo quando assina os contratos. Você só viu as pessoas entrando de m

ochila, não essas pessoas sentadas no jurídico com uma pilha de papéis, lendo cláusula a cláusula.

Começa pela gratidão, mas uma semana depois, virou a persona dentro da casa. Assumiu o game. Tudo vira jogo. Todas as palavras, reações, sorrisos, as performances individuais levadas até a exaustão.

Começa a dar merda.

O caso de Lucas Penteado é isso.

Lucas tem uma crise de personas. Dentro da casa, pessoas que foram muito aceitas em suas trajetórias éticas, se sentem no papel de julgar o cara. Tudo isso envolvendo raça, tudo isso destruindo emocionais na frente da TV, tudo isso assistido por milhões, tudo isso jogando a audiência pra cima, tudo isso gerando milhões de interações

tudo isso fazendo Boninho, Rodrigo e Leifert baterem metas internas de audiência, engajamento e as marcas, no fim do dia, ficam felizes.

A felicidade das marcas vai direto pro bolso dos apresentadores e diretores.

Não pouco dinheiro. Boni 2 coleciona Porsches. O cara COLECIONA PORSCHES.

A Globo celebra o engajamento, que dá um up no dinheiro novo, nesse contrato campeão com a Endemol, num ano em que o presidente só falta chegar lá com uma Kombi de miliciano e fechar o PROJAC.

Mas o roteiro é pra dar merda. E quanto pior a merda, quanto maior a desgraça, a violência psíquica, melhor, mais intenso o engajamento. E mais grana.

É um tipo de Coliseu.

Onde você joga pessoas carentes de comida, ou grana, ou fama, ou tudo isso. E deixa se matarem, pro delírio da turba.

E surgem pessoas dizendo que estão “se desconstruindo” ao ver o BBB. Que ele é uma “escola”. Amigos, não existe desconstrução, e escola não é barbárie. BBB é barbárie.

A miséria humana está sendo apresentada todos os

dias ali, a humilhação de pessoas, a destruição de reputações, criando um genocídio emocional, porque os confinados e adoecidos estão assistindo outros confinados e adoecidos, que já estavam confinados e adoecidos antes, mas agora estão confinados e adoecidos por dinheiro.

Nós estamos ansiosos, deprimidos, deslocados, em solidão, saindo destruídos de relacionamentos, carentes de referenciais, com medo do futuro, indignados com o mundo, e vendo diante de nós a desgraça humana enquanto Boni 2 e outros homens brancos instrumentalizaram tudo pra que esse terror se tornasse entretenimento.

Nós estamos novamente presos nas correntes do homem branco. Uma grana, uns holofotes, e nós entregamos tudo.

As pessoas negras ali serão muito mais julgadas que as brancas. O racismo que existe em todos nós vai se disfarçar de “alma não tem cor”, “Carol foi desumana”, não meu amigo.

Num país com 400 mil estupros, 60 mil homicídios, 12

milhões passando fome, um extermínio de negros e mulheres, desumano é o país, desumano é o Estado, desumana é a Globo. Carol só foi humana, e muito humana. Porque humano erra. Ela errou. Mas vocês estão sedentos por sangue e precisam que ela morra, mesmo que simbolicamente. Todos vocês estão iludidos sobre o poder que tem de cancelar alguém.

Mas é porque eu não tenho (ainda) acesso ao teu histórico de navegação. Porque se as tuas merdas se tornassem públicas,

se todo mundo soubesse do histórico de navegação de todo mundo,

ninguém apertava a mão de ninguém.

Anderson França

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Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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