As câmeras não mostraram toda a verdade

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Ilustração: Claudio Brites

Não escrevi ontem sobre o caso de violência doméstica e o espancamento de Pamella Holanda, de 27 anos.

O criminoso, Iverson de Souza Araújo, conhecido como “DJ Ivis”, praticou as primeiras agressões físicas e espancamentos quando Pamella estava grávida. Ele bate em mulher grávida.

As agressões físicas, no entanto, vieram depois, certamente, das agressões psicológicas. Porque a OMS, essa mesma que hoje trata da pandemia, disse, em 2005, que a violência física é o último grau das violações que uma mulher sofre num relacionamento. Que homens, ao se relacionarem, estabelecem imediatamente a relação de propriedade com o corpo da parceira, se sentindo no legítimo direito de dizer, por exemplo, que roupa pode vestir, o que comer, onde ir, onde não ir, com quem ter amizades, como gastar dinheiro, e na sequência, ele se torna “credor” das “dívidas” que a parceira passa a ter com ele, por não seguir à risca os mandamentos estabelecidos por ele, e nesse ambiente ela passa a ser considerada desleal, mentirosa, fraudadora, traidora, e POR ISSO, merece castigo e punição.

Na cabeça desse homem, a punição não irá reeducar a parceira, mas intimidá-la. Homens que violentam não acreditam que praticam violência, mas justa correção. E não acreditam que mulheres mudem, mas que são naturalmente mentirosas, e as punições vão, no máximo, impedir que ela cometa “ilicitudes” com tanta frequência. A relação de poder está estabelecida. Somado a isso, a força física do homem, o poder econômico, a família dele que, mesmo com MULHERES, tende a culpabilizar a parceira, os amigos que não interferem, a sociedade que isola o caso para uma privacidade “discreta e prudente”, como se brasileiro fosse discreto e prudente em alguma merda na vida. É esse o sentido de: “ninguém mete a colher”, ou seja: somos discretos e prudentes. Não se meter passa a significar o mesmo que ser maduro, adulto, “eles que se resolvam”, “estão nessa porque escolheram”, dando a impressão de que ambos, naquela relação abusiva, tem o mesmo poder de escolha.

E NÃO TEM. A maioria dos casos de feminicídio se dão exatamente quando a mulher decide escolher sair de um relacionamento. O homem não aceita a “afronta” ao seu poder, e se acha no direito de aniquilar a vida da pessoa. Não. As pessoas não escolheram estar ali, naquele contexto, daquele jeito. Elas escolheram outra coisa, que naquele momento, já não existe mais.

O QUE AS PESSOAS NÃO ENTENDEM, E PRECISAM, é que num relacionamento onde essas violências se estabelecem, já não há mais volta. Esse homem está cometendo um crime, e embora seja verdade que não há punição prevista para violência psicológica no Código Penal, há, no entanto, reparação por danos morais na esfera cível. Porque desta violência surgirão outras, como a patrimonial e a física. A patrimonial é quando ele decide o que fazer com o dinheiro dela. Aí já estamos diante de um caso muito complicado. Uma mulher fragilizada, infeliz, com medo de sair, sem forças pra sair, destruída todos os dias, adquirindo doenças físicas e psicológicas, ficando cada vez mais fraca diante dele, e ele, com a maior sensação de poder, ao mínimo erro dela, erro na leitura dele, parte pra primeira agressão física.

Então amigos, o caminho foi longo. O criminoso, Iverson Araújo, percorreu este caminho, e o que as câmeras filmaram foi uma pequena parte do que ele, de fato, fez com ela. As câmeras não filmam as feridas dentro da alma dela. Os traumas psíquicos. Isso não é perceptível na câmera. E ela teve que se submeter por motivos de: filho e pelo poder econômico dele. Mas teve um momento em que ela percebeu que sua dignidade e direito à vida estavam comprometidos, era melhor passar fome com a criança longe dele, e livre, que naquele cárcere privado.

Então as câmeras não mostram toda a verdade. TEM MUITO MAIS COISA que não foi filmada.

Ela teve o recurso de ir pra mídia. E enquanto o caso dela repercutia outras 36 MIL MULHERES ERAM VIOLENTADAS, pois segundo o Ipec, 25 MULHERES SOFREM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA POR MINUTO NO BRASIL, o mesmo país onde

3.200 MULHERES FORAM ASSASSINADAS POR HOMENS, EX-MARIDOS, NAMORADOS OU COMPANHEIROS, segundo dados do G1.

Só na pandemia, 1.330 mulheres foram mortas, ou seja,

pra cada Pamella, temos outras 36.000 mulheres violentadas POR DIA.

POR. DIA.

HOJE, MAIS 36.000 PAMELLAS.

AMANHÃ, MAIS 36.000 PAMELLAS.

É tão banalizada a violência, que Damares, ministra dos DIREITOS HUMANOS E DA MULHER, extinguiu com as políticas de Delegacias da Mulher, num país onde 90% das cidades não tinham essas delegacias. Tão banalizada, que o Judiciário expôe e ri de vítima, como foi o caso de Mariana Ferrer.

Tão banalizada, que esse criminoso, de nome Iverson, foi recompensado pelo seu crime.

Ontem, sua conta de 700 mil seguidores chegou a quase UM MILHÃO de apoiadores e legitimadores, E LEGITIMADORAS, dessa violência.

Em primeiro lugar, que A PRÓPRIA EXISTÊNCIA DE IVERSON NA CONDIÇÃO DE “ARTISTA” JÁ DENOTA QUE NÓS, COMO POVO, PERDEMOS TOTALMENTE A CAPACIDADE ESTÉTICA e de uso da arte para o enriquecimento da cultura popular brasileira.

Não.

Não vem com papinho esquerda-ciranda-compreensiva de dizer que TUDO que é feito no campo popular deve ser respeitado. Não deve. DJ Pedrinho, um MC de funk, aos 11 anos, dizia que tinha que botar “as novinha pra mamar”, se isso não é uma porra de uma apologia a pedofilia, num tempo onde menores de idade são largadas sem qualquer critério no TikTok fazendo desafio do Big Bank e mostrando a bunda como se fossem mulheres adultas, nada mais será pedofilia.

Muita merda é produzida em nome da “cultura popular”, onde o cantor soca um caminhão de dinheiro no rabo, e vai morar numa mansão, BEM LONGE DO POVO QUE SUSTENTA SUA “ARTE”.

Arte de merda, qualificada pelo número de views num Spotify.

Arte de merda, com um sujeito que não faz nenhuma pesquisa musical, não sabe lidar com uma Technics, e se diz deejay. Um vagabundo oportunista de capacidade estética cancerosa, apodrecida, que dá as pessoas o que desperta nelas o sentimento mais preguiçoso de serem apenas o que já são, uma arte que não as desafia dar um passo adiante, aprender algo mais, conhecer as raizes da cultura brasileira. É só cachaça, traição, cultura do entorpecimento, cultura da superficialidade, seja no sertanejo, seja nessa porra que esse sujeito tocava que eu nem tive o trabalho de dar unfollow porque nunca nem segui.

Eu nem sabia que esse puto existia no mundo.

Um país que deu Arthur Verocai e Chico Pinheiro pro mundo, ter DJ Ivis.

Chega a ser um pecado citar Arthur e Chico num texto em que eu desço no fundo desse esgoto.

A existência de Ivis denota o fracasso da educação brasileira. Somos um povo lixo, que se expressa de uma forma lixo, e ouve coisas lixo. E por isso vivemos no lixo, apoiamos um presidente lixo, e quando um homem espanca uma mulher, NÃO SE PODE ESPERAR QUE NOSSA REAÇÃO NÃO VÁ SER UM LIXO, como essa, de mais seguidores. O público que sustenta esse sujeito, o faz porque é o mesmo povo vítima de um país sem projeto de educação crítica, e por isso tende a reproduzir uma subcultura cada vez mais relinchante, e fodace, eu venho do morro, e no morro temos Cartola, vão tomar no cu.

O mercado vai reagir de duas formas: as empresas, PORQUE NO FUNDO SÃO OBRIGADAS A REAGIR NA LEI, e o público, que vai aplaudir o cara.

Ontem, um perfil de instagram chamado @wgabriel teve a coragem de fazer uma pergunta pros seguidores:

SE VOCÊ CUIDASSE DA CARREIRA DE DJ IVIS, O QUE FARIA AGORA PRA CUIDAR DA IMAGEM DELE?

E a assessoria dele disse que vai esperar “O DESENROLAR DOS FATOS PARA SE PRONUNCIAR”. Tanto esse medíocre desse Gabriel, quanto a assessoria, deveriam era se demitir, e não se oferecer pra defender um canalha.

A imprensa, os influencers e as celebridades precisam parar de capitalizar a surra numa mulher e agir seriamente. A gente sabe que muita gente só falou desse caso pra ganhar like, views, melhorar a imagem. Quem, dessa turma, informou pra você que segundo o Ipec, 36 mil mulheres sofrem violência doméstica POR DIA no Brasil?

É esse o Brasil de 2021. A pior versão dos Brasis que vieram antes, todos juntos, um entrou no cu do outro, e são esse monstro que vemos hoje.

Um país que, pelos números, vive um extermínio de mulheres. Seja juíza, seja desempregada no morro. Há, na minha leitura, o extermínio do povo negro, e o extermínio de mulheres.

MAS OLHAR TUDO DE FORA É BOM. Difícil, é você se incluir nessa merda. Se mulher, que tipo de criação tá dando pro teu filho homem. O que você fala dentro da cozinha, quando só está você e ele. Que tipo de homem você tá criando. E VAMOS SER SINCEROS: Poucos são os pais que co-assumem a responsabilidade de explicar o básico pro filho: não sejam criminosos.

Mas mulheres precisam deixar claro pros seus companheiros que eles PRECISAM imediatamente se envolver nesse processo de criação. E AMIGOS DESSES HOMENS PRECISAM FAZER ISSO TAMBÉM. Mas, para de palhaçada, gente. Mundo ideal. Cê jura que tem homem lendo esse texto?

TEM HOMEM LENDO ESSE TEXTO?

Se tiver, deixa eu te dizer:

NÓS, ENQUANTO GRUPO E GÊNERO, SOMOS IGUALMENTE RESPONSÁVEIS POR CADA TAPA NA CARA QUE PAMELLA LEVOU.

O palhaço que VIU ela apanhar e não fez nada, aquele cara tem que ser preso como cúmplice. Você que SABE que teu amigo ou vizinho, nem precisa saber o nome, espanca a mulher, e você não faz nada,

não pode vir na internet bancar o esquerdinha e reclamar que Bolsonaro não fez nada diante do caso da Covaxin. Ele prevarica no governo, você prevarica em casa.

Entenda: estamos diante de um massacre. Defender o fim da violência, do extermínio, não é te fazer feminista, é te fazer CIDADÃO. Civilizado. Não precisa pegar um cartaz e ir pra porra de passeata nenhuma, é forçar a sociedade, patriarcal, que está muito mais nas suas mãos que nas delas, de extinguir essa carnificina. Seja pela lei, pela fiscalização, seja pela SUA intervenção. Não quer ou não pode sair na porrada com o cara, vai na polícia, chama um delega na xinxa, homem com homem se entende, e você SABE DISSO. Ajeita. Arruma um jeito. Se o cara é teu amigo, deixa claro pra ele que tu não vai andar com ele. Que não vai trabalhar com ele. Que não vai ter ele nas tuas redes. Se vira, maluco. Se. Vira.

Porque estamos diante de um extermínio. E explorar esse tema por UM dia não basta.

Enquanto escrevia esse texto, 18 mil mulheres sofreram violência, porque agora é meio dia. Até meia noite, outras 18 mil.

Extermínio de mulheres, que chama.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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